Machado de Assis:
Joaquim Maria
Machado de Assis nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 21 de Junho de 1939.
Seus pais eram Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado de Assis, mas
perdeu a mãe muito cedo , sendo assim criado também pela madrasta Maria Inês.
Quando cresceu, se tornou
um típico homem das letras bem sucedido, sendo reconhecido em todo o país. Ele
se casou com uma mulher chamada Carolina, que morreu em 1904. O Mario dedicou-a
o soneto “Carolina” , que a celebrizou.
Fuga
do hospício
Por Machado de Assis
A fuga de doidos do hospício é mais grave do que pode parecer à primeira
vista. Não me envergonho de confessar que aprendi algo com ela, assim como que
pedi uma das escoras da minha alma. Este resto de frase é obscuro, mas eu não
estou agora para emendar frases nem palavras. O que for saindo saiu, e tanto
melhor se entrar na cabeça do leitor.
Ou confiança nas leis, ou confiança nos homens, era convicção minha de
que se podia viver tranquilo fora do Hospício dos alienados. No Bond, na
sala, na rua, onde quer que se me deparasse pessoa disposta a dizer histórias
extravagantes e opiniões extraordinárias, era meu costume ouvi-la quieto. Uma
ou outra vez sucedia-me arregalar os olhos involuntariamente, e o interlocutor,
supondo que era admiração, arregalava também os seus, e aumentava o concerto do
discurso. Nunca me passou pela cabeça que fosse um demente. Todas as histórias
são possíveis, todas as opiniões respeitáveis. Quando o interlocutor, para
melhor incutir uma ideia ou um fato, me apertava muito o braço ou me puxava com
força pela gola, longe de atribuir o gesto a simples loucura transitória,
acreditava que era um modo particular de orar ou expor. O mais que fazia, era
persuadir-me depressa dos fatos e das opiniões, não só por ter os braços mui
sensíveis, como porque não é com dois vinténs que um homem se veste neste
tempo.
Assim vivia, e não vivia mal. A prova de que andava certo, é que não me
sucedia o menor desastre, salvo a perda da paciência; mas a paciência
elabora-se com facilidade; - perde-se de manhã, já de noite se pode sair com
dose nova. O mais corria naturalmente. Agora, porém, que fugiram doidos do
hospício e que outros tentaram fazê-lo (e sabe Deus se a esta hora já o terão
conseguido), perdi aquela antiga confiança que me fazia ouvir tranquilamente
discursos e notícias. É o que acima chamei uma das escoras da minha alma. Caiu
por terra o forte apoio. Uma vez que se foge do hospício dos alienados (e não
acuso por isso a administração) onde acharei método para distinguir um louco de
um homem de juízo? De ora avante, quando alguém vier dizer-me as coisas mais
simples do mundo, ainda que não me arranque os botões, fico incerto se é pessoa
que se governa, ou se apenas está num dqueles intervalos lúcidos, que permitem
ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de
todos.
A própria pessoa – ou para dar mais claro exemplo, - o próprio leitor
deve desconfiar de si. Certo que o tenho em boa conta, sei que é ilustrado,
benévolo e paciente, mas depois dos sucessos desta semana, que lhe afirma que
não saiu ontem do hospício? A consciência de lá não haver entrado não prova
nada; menos ainda de ter vivido desde muitos anos, com sua mulher e seus
filhos, como diz Lulu Sênior*. É sabido que a demência dá ao enfermo a visão de
que um estado estranho e contrário à realidade. Que saiu esta madrugada de um
baile? Mas os outros convidados, os próprios noivos que saberão de si? Podem
ser seus companheiros da Praia Vermelha. Este é o meu terror. O juízo passou a
ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese.
Isto, quanto à segunda parte da minha confissão. Quanto à primeira, o
que aprendi com a fuga dos infelizes do hospício, é ainda mais grave que a
outra. O cálculo, o raciocínio, a arte com que procederam os conspiradores da fuga,
foram de tal ordem, que diminuiu em grande parte a vantagem de ter juízo. O
ajuste foi perfeito. A manha de dar pontapés nas portas para abafar o rumor que
fazia Serrão arrombando a janela do seu cubículo, é uma obra prima; não
apresenta só a combinação de ações para o fim comum, revela a consciência de
que, estando ali por doidos, os guardas os deixariam bater à vontade, e a obra
da fuga iria ao cabo, sem a menor suspeita. Francamente, tenho lido, ouvido e
suportado coisas muito menos lúcidas.
Outro episódio interessante foi a insistência de Serrão em ser submetido
ao tribunal do júri, provando assim tal amor da absolvição e conequente
liberdade que faz entrar em dúvida se se trata de um doido ou de um simples
réu. Não repito o mais, que está no domínio público e terá produzido sensações
iguais às minhas. Deixo vacilante a alma do leitor. Homens tais não parecem
artífices de primeira qualidade, espíritos capazes de levar a cabo as questões
mais complicadas deste mundo?
Não quero tocar no caso de Paradeda Júnior, que lá vai mar em fora, por
achá-lo tardio. Meio século antes, era um bom assunto de poema romântico.
Quando, alto mar, o infeliz revelasse, por impulsão repentina, o seu verdadeiro
estado mental, a cena seria terrível, e a inspiração germânica, mais que
qualquer outra, acharia aí uma bela página. O poema devia chamar-se “Der
narrische Schiff” (A nau dos insensatos). Descrição do mar, do navio
do céu; a bordo, alegria e confiança. Uma noite, estando a lua em todo o
esplendor, um dos passageiros contava a batalha de Leipzing ou recitava uns
versos de Uhland (poeta alemão). De repente, um salto, um grito, tumulto,
sangue: o resto seria o que Deus inspirasse ao poeta. Mas, repito, o assunto é
tardio.
De resto, toda esta semana foi de sangue, - ou por política, ou por
desastre, ou por desforço pessoal. O acaso luta com o homem para fazer sangrar
a gente pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o cocheiro evadiu-se
e começou o inquérito. Como os feridos não pedem indenização à companhia, tudo
irá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. No caso da Copacabana, deu-se a
mesma fuga, com a diferença que o autor do crime não é o cocheiro; mas a fuga
não é privilégio do ofício, e, demais, o criminoso já está preso. Em Manhuaçu
continua a chover sangue, tanto que marchou para lá um batalhão daqui. O
comendador Ferreira Barbosa (a esta hora assassinado) em carta que escreveu ao
diretor da Gazeta e foi ontem publicada, conta minunciosamente
o estado daquelas paragens. Os combates têm sido medonhos. Chegou a haver
barricadas. Um anônimo declarou pelo Jornal do Comércio que,
se a comarca de S. Francisco tornar à antiga província de Pernambuco, segundo
propôs o Sr. Senador João Barbalho, não irá sem sangue. Sangue não tarda a
escorrer do jovem Estado (peruano) do Loreto...
Enxuguemos a alma. Ouçamos, em vez de gemidos, notas de música. Um grupo
de homens de boa vontade vai dar-nos música velha e nova, em concertos
populares, a preço cômodo. Venham eles, venham continuar a obra do Clube
Beethoven, que foi por tanto tempo o centro das harmonias clássicas e modernas.
Tinha de acabar, acabou. Os Concertos popularestambém acabarão um
dia, mas será tarde, muito tarde, se considerarmos a resolução dos fundadores,
e mais a necessidade que há de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a região
serena e divina...Um abraço ao Dr. Luís de Castro.
Pela minha parte, proponho que, nos dias de concerto, a Companhia do
Jardim Botânico, excepcionalmente, meta dez pessoas por banco nos bonds elétricos,
em vez das cinco atuais. Creio que não haverá representação à Prefeitura, pois
todos nós amamos a música; mas dado que haja, o mais que pode suceder, é que a
prefeitura mande reduzir a lotação a quatro pessoas do contrato; em tal
hipótese, a companhia pedirá como agora, segundo acabo de ler, que a Prefeitura
reconsidere o despacho, - e as dez pessoas continuarão, como estão continuando
as cinco. Há sempre erro em cumprir e requerer. Quanto ao método, é muito
melhor que tudo se passe assim, no silêncio do gabinete, que tumultuosamente na
rua: Não pode! Não pode!
Nenhum comentário:
Postar um comentário